Companhia Pequeno Teatro do Mundo: agricultores da Cultura
*Por Shel Almeida
Que o Brasil é um país muito rico culturalmente, é fato. Que a diversidade cultural é umas das grandes qualidades do país, também é. O brasileiro respira cultura em toda sua abrangência cotidiana. Culinária, música, artesanato, são exemplos de produtos culturais que percorrem o dia-a-dia do povo brasileiro, muitas vezes sem serem notados como tal. Cultura e arte caminham juntas e ter consciência disso é algo que pode mudar a maneira como se encara o trabalho de quem produz ambas.
Um povo não vive sem cultura, por mais que, por muitas vezes, ainda não tenha aprendido a perceber e valorizar sua falta como percebe a do alimento, por exemplo. Se falta o pão na mesa, sentimos fome e sabemos que dessa forma, não conseguimos viver. Mas, e se a ausência for de cultura? Vivemos? E é possível que a cultura se ausente, já que ela faz parte das nossas expressões e manifestações mais enraizadas, como a maneira de falar, de interagir, de conviver em sociedade? Não é possível existir sem se manifestar culturalmente. Mas é preciso que, para que a cultura, tal qual a arte, também seja compreendida como alimento para a existência humana, que seja tratada com a mesma importância que se trata a nutrição do corpo.
Pode soar filosófico demais ou clichê demais dizer que a arte e a cultura são a nutrição para a mente e para o espírito. Mas, de fato, são. No entanto, é preciso entender também que arte e cultura não se limitam ao que é erudito ou o que é produzido nos grandes centros urbanos. O interior do país também produz muita cultura e Bragança Paulista é um desses lugares. Aqui se produz cultura erudita sim, mas também muita cultura popular.
Germinar arte
Hoje Bragança Paulista é uma cidade que produz todo tipo de arte: música, teatro, dança, cinema, artes plásticas e visuais. É possível encontrar, aqui, diversos tipos de manifestações e produtos culturais. E nesse sentido é preciso entender também o trabalho da arte, enquanto produto da cultura, como um ofício de mesma relevância que o de um agricultor.
Assim como é o trabalho de cultivo da companhia Pequeno Teatro do Mundo. Formada por apenas duas pessoas, Fabiana Barbosa e Fábio Retti, a companhia de teatro trabalha a arte por meio das marionetes de fio, o que torna o ofício desses agricultores da cultura ainda mais detalhista e semelhante ao dos agricultores da terra. Fabiana e Fábio fazem todo o trabalho de selecionar e plantar a semente, arar o terreno que será semeado, aguardar o tempo de germinação e fazer a colheita.
Os dois artistas, que têm, cada um, mais de 20 anos de experiência no teatro, são os responsáveis por toda a produção manual do que é cada espetáculo, o que não significa apenas a manipulação dos bonecos. Eles próprios os confeccionam, assim como produzem todo o cenário e o figurino. Também escrevem os roteiros, sejam originais ou adaptados, pensam e executam luz e som das peças, além das legendas, quando necessário. São artistas e técnicos do ofício de germinar cultura.
Colher os frutos
Os frutos que hoje colhem desse trabalho intenso que se iniciou em 2015 é o reconhecimento da qualidade das sementes que plantam e alimentam o público. Com seis espetáculos no repertório, (as óperas “O Navio Fantasma”, de Richard Wagner, “O Menino e os Sortilégios”, de Maurice Ravel e “Onheama”, de João Guilherme Ripper e “Rossini por um fio”, que conta a história do compositor Gioacchino Rossini, além de “Natércia e suas histórias!”, espetáculo de narração de histórias com marionetes; e “Grande Circo Grandevo”, que fala de artistas de circo idosos, o Pequeno Teatro do Mundo já percorreu muitos quilômetros Brasil afora, do norte ao sul do país.
Entre as apresentações e festivais que a companhia realizou estão: circulação pelo interior de São Paulo (Bragança Paulista, Campinas, Ribeirão Preto e Cruzeiro), com o espetáculo “Grande Circo do Tempo” financiada pelo Edital n° 38/2021 do ProAC Expresso Direto da Secretaria de Cultura, Economia e Indústria Criativas do Estado de São Paulo, 2023; Festival Amazonas de Ópera – edições 2019, 2021 (online), 2022 e 2023, no Teatro Amazonas e em comunidades ribeirinhas e indígenas no interior do estado; FILO – Festival Internacional de Londrina, 2019; FIL – Festival Internacional Intercâmbio de Linguagens, Rio de Janeiro, 2023; Mostra SESC Cariri de Culturas, 2023; Festival Cena Bárbara, Santa Bárbara D’Oeste, 2023 (o festival privilegia grupos do interior de SP na curadoria); Festival de Ópera de Ouro Preto, 2022; Festival de Música Erudita do Espírito Santo, 2022; SESC Encena Paraná, 2019 e 2021.
Em Bragança Paulista o Pequeno Teatro do Mundo fez temporada no Instituto Entrando em Cena, em 2018, participou de três edições do Festival de Inverno, de três edições do Festival Arte Serrinha e do Festival Se Essa Rua Fosse Sua, da Casa Lebre. Estando em cada um desses lugares, o Pequeno Teatro do Mundo levou o nome de Bragança Paulista e da cultura bragantina consigo.
As apresentações acontecem de diversas formas, por meio de Leis de Incentivos, como o ProAc ou a Lei Aldir Blanc de Emergência Cultural ou por chamamentos, como os da Secretaria Municipal de Cultura de Bragança Paulista. Há também convites, como foi o caso da apresentação da companhia no MAM, em SP ou no no FIL, no RJ. Esses dois casos fizeram com que percebessem que estavam sendo descobertos em âmbito nacional.
“Éramos a atração principal no FIL. Fomos com dois espetáculos, O Menino e os Sortilégios e Onheama. A apresentação no MAM também foi muito importante. Por mais que já estejamos apresentando trabalhos de qualidade pelo país há algum tempo, quando você chega a São Paulo, parece que o que faz passa a ser mais valorizado e validado. Por isso fazemos tanta questão de dizer que somos do interior, de Bragança Paulista, porque é preciso que as pessoas tenham esse olhar para o que é produzido fora dos grandes centros. Há muita coisa boa sendo criada nas cidades do interior. Há muitos artistas incríveis escondidos por aí”, falam.
Fecundar o chão para novos artistas
O trabalho que Fabiana e Fábio realizam com o Pequeno Teatro do Mundo não se resume ao braçal, de produzir tudo o que é um espetáculo de marionetes. Passa também pelo criativo e intelectual, como é o trabalho, fundamental na arte. E passa também pela pesquisa. Para o espetáculo Grande Circo Grandevo, esse processo de pesquisa envolveu entrevistas com diversas pessoas, entre elas artistas de circo, com quem falaram sobre envelhecimento, tema tratado na peça. “Fizemos a apresentação em Bragança no Centro Dia do Idoso, exatamente no Dia do Idoso e foi uma experiência muito especial. Recebemos muitos retornos positivos, e nos apresentar aqui é sempre muito gratificante. Com essa circulação, tivemos momentos muito ricos. Levar as marionetes para idosos, com o espetáculo falando desse processo dificultoso que é envelhecer, faz a criança interna de cada um florescer. O espetáculo é uma reverência aos artistas de circo, que dedicam suas vidas a isso. Em Ribeirão Preto, depois da apresentação, soubemos que dois dos idosos que viviam no asilo que nos recebeu, foram artistas circenses, então foi muito emocionante. O que percebemos é que nesse espetáculo, as marionetes são para eles como espelhos, e lhes traz a possibilidade de esperança”, analisam.
Em Cruzeiro, o impacto positivo que o Pequeno Teatro do Mundo deixou, não foi apenas com o público alvo, mas com todos que assistiram o espetáculo. A Secretaria de Cultura do município agradeceu a presença da companhia na cidade com uma carta. “Desde que nos lembramos, esta foi a primeira vez que Cruzeiro recebeu um Teatro de Bonecos, com o uso da técnica de marionetes. Como se não bastasse o diferencial em relação à estética do espetáculo, fomos ainda impactados pela temática inovadora (e incomum) sobre o envelhecimento e sobre o universo circense, que sensibilizou a todos”, diz a carta. Mas, segundo o texto, o que o motivou a redigi-lo foi a referência que a companhia bragantina se tornou para os artistas cruzeirenses. “Cruzeiro é um município relativamente pequeno, com poucos grupos de Teatro e que trabalham numa linha, muitas vezes, bem tradicional. Ter recebido o “Grande Circo do Tempo”, com certeza contribuiu para inspirar os artistas locais a descobrir novos horizontes e formatos de explorar o Teatro, além de trazer a muitos, o conhecimento sobre a existência do ProAC e despertar o interesse sobre leis e outros programas de incentivo semelhantes. Não temos dúvida de que este fato só irá fomentar o aprimoramento dos grupos e a profissionalização neste universo aqui na cidade, pois a maioria dos atores cruzeirenses ainda encara o teatro como um hobby. Observar de perto a excelência de uma companhia como o Pequeno Teatro do Mundo e perceber que o investimento em formação, preparo e pesquisa cuidadosa abre caminhos e oportunidades – possibilitando a aqueles que desejarem viver da arte que esta se torne uma possibilidade concreta – certamente caracterizará um marco para nossos artistas”, diz a carta.
A arte é ofício, é profissão. Reconhecer isso e valorizar quem está nessa lida todos os dias é valorizar o que é mais inerente em nós, enquanto seres humanos. O que nos difere dos outros seres não é o raciocínio, é a cultura. É o que trazemos da ancestralidade e o que passamos para a descendência. É por esse alimento que seremos lembrados, aquele que nos comove a alma.
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